Press Se a falta do gás russo fizer tremer a indústria da Alemanha, também resto da Europa sofrerá

News | 25-06-2022 in Diário de Notícias

Na Unter den Linden, a avenida que leva às Portas de Brandeburgo, grades postas pela polícia afastam qualquer possibilidade de aproximação à embaixada russa, um colossal edifício construído após a Segunda Guerra Mundial. É o sinal mais visível para quem visita Berlim da fortíssima tensão com a Rússia desde que esta invadiu, a 24 de fevereiro, a Ucrânia. Mas outros sinais, de consequências mais evidentes, começam a surgir, como o alerta esta semana pela BDI, a associação industrial alemã, de uma possível recessão se o gás russo deixar de chegar. A previsão de crescimento do PIB foi já revista de 3,1% para 2,5.

"Nem tudo é simples de compreender na relação entre a Alemanha e a Rússia, tanto hoje como no passado. Basta ver como a antiga chanceler Angela Merkel tem dificuldade em explicar a aposta no gás russo, que criou esta dependência", comenta um jornalista que prefere não ser identificado. A própria embaixada russa é um símbolo dessa complexidade da relação. Quem conheça um pouco da história do século XX, será tentado a pensar que foi construída em terreno requisitado pelo Exército Vermelho quando, em maio de 1945, entrou em Berlim e fez capitular o III Reich. Mas na verdade ocupa o mesmíssimo terreno que o Palais Kurland, destruído pelos bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial mas comprado no início do século XIX por um czar, quando ninguém imaginaria que um dia haveria uma URSS e muito menos uma RDA e uma RFA ou que o célebre Muro de Berlim passaria nas proximidades da embaixada.

"A guerra mostra como é importante diversificar as nossas fontes de energia. Não podemos depender tanto do gás da Rússia", declara Kirsten Scholl, chefe do Departamento Europa no Ministério dos Assuntos Económicos e da Ação Climática, com a parte final da designação a refletir a presença dos Verdes no governo liderado por Olaf Scholz.

A dependência do gás russo não é exclusiva da Alemanha, afeta outros países da União Europeia, mas é mais acentuada neste país. Enquanto, em média, a UE dependia, no momento do início da guerra, 43% do gás russo, a Alemanha dependia 55%. Também a dependência alemã do petróleo é superior à média europeia e o mesmo acontece com o carvão. A explicação, em parte, tem que ver com o tamanho da economia, a maior da Europa e a quarta a nível mundial. Além da questão industrial, há a do aquecimento dos edifícios (destino de 50% do gás russo) e trata-se de um país de 80 milhões de habitantes.

Na sequência das eleições de 2021, a Alemanha tem agora no governo uma inédita coligação de três partidos, com os sociais-democratas (SPD) de Scholz a partilharem responsabilidades com Verdes e liberais do FDP. O programa é ambicioso, pois procura conciliar competitividade com sustentabilidade, mas com os acontecimentos pós-24 de fevereiro - sanções à Rússia e as retaliações desta - a serem um teste à determinação alemã. Por exemplo, depois de Berlim ter suspenso o gasoduto Nord Stream 2, Moscovo, alegando problemas técnicos, tem reduzido o envio de gás pelo Nord Stream 1, dificultando o objetivo alemão de ter os depósitos de armazenamento cheios para o inverno.

"O que é importante neste momento é a solidariedade dentro da UE", sublinha Scholl, o que passa por sanções à Rússia negociadas pelos 27 e de implementação gradual, de modo a ter em conta diferentes dependências. Portugal e Espanha, por exemplo, estão muito mais confortáveis, pois o gás que consomem ou chega da Argélia por gasoduto ou é GNL trazido por navios. Mas no extremo oposto estão países como a Hungria ou a Bulgária, sendo que neste último as divisões sobre sanções à Rússia fizeram cair o governo.

 

Da primeira passagem dos Verdes pelo governo, em 1998, numa aliança com o SPD, ficou a determinação de acabar com o nuclear. E mesmo a suspensão desse processo, anunciada, foi anulada em 2011, quando, na sequência do acidente em Fukushima, no Japão, a democrata-cristã Merkel determinou o fecho gradual das centrais até 2022.

Rever a questão nuclear está fora de questão, pois só falta fechar as três derradeiras centrais. "Uma análise mostrou que uma extensão dos tempos de funcionamento só pode dar uma contribuição muito limitada para a resolução do problema e tem custos económicos e riscos de segurança muito elevados. O governo federal mantém a sua decisão de sair", explica Scholl.

A energia nuclear, que alguns defendem como solução mais eficaz para evitar emissão de carbono, nunca foi muito popular na Alemanha, como explica Katharina Umpfenbach, do Instituto Ecológico de Energia, em Berlim: "Fukushima foi a gota de água no debate sobre o nuclear. Ao contrário do Reino Unido e de França, em que há também o ramo nuclear militar e isso é visto como importante para a condição de potência, na Alemanha o nuclear foi sempre civil e, mesmo assim, criticado pela população. Críticas aumentaram depois de Chernobyl, em 1986, e a maioria da opinião pública era contra. Mesmo na RDA, onde a informação sobre o acidente nuclear foi escondida, o sentimento após 1989 foi contra, e a única central do Leste fechou." E acrescenta que "os Verdes lideraram o movimento antinuclear, mas muita oposição vinha também dos aldeãos, que costumam ser conservadores. Só que a indústria pressionava a CDU a manter as centrais".

Ora, se travar o encerramento das centrais restantes está já excluído, quais as alternativas para o gás russo, mesmo que o fim da importação, se depender dos alemães, esteja ainda a uns anos de distância? Um documento do Instituto Ecológico de Energia aponta o caminho: "A curto prazo, mudança de contratos por petróleo e carvão, cooperação com a Polónia na refinaria de Schwedt, nova lei do gás que obrigue a mínimos de armazenamento antes de cada inverno, criação de reserva de carvão; a médio prazo, construção de terminais de GNL em Brunsbüttel e Wilhelmshaven, estratégia para reduzir consumo de gás através de maior eficiência e uso de renováveis."

Política externa, economia e ecologia misturam-se num grande desafio à Alemanha, que quer ser dura com a Rússia, sem desistir de ser competitiva e ter um ambiente limpo. Mas não se pode dizer que não haja coordenação entre os ministérios, até porque os três ministros até são todos dos Verdes: Annalena Baerbock, nos Negócios Estrangeiros, Robert Habeck, na Economia, e Steffi Lemke, no Ambiente.

Com um PIB em 2021 de 4,3 biliões de dólares, a Alemanha é a locomotiva da Europa, e daí que a forma como for afetada pela crise relacionada com a guerra na Ucrânia (à qual fornece armas) preocupe vários parceiros, incluindo Portugal, que este ano foi o país em destaque na Hannover Messe, o que significou uma montra de luxo para empresas com negócio com alemãs.

"A participação de Portugal em eventos como o Hannover Mess, em particular com o destaque que a representação nacional teve, é extremamente importante. Estamos a falar da maior feira industrial do mundo, onde estão as empresas mais inovadoras. Acredito que tenham saído desta participação oportunidades para as empresas nacionais, tanto em termos da entrada em novos mercados como no estabelecimento de parcerias estratégicas que lhes darão outra escala. Outro aspeto muito relevante, graças aos excelentes exemplos de inovação nacional que foram apresentados em Hannover, é o contributo que esta participação dá à imagem de Portugal no seu conjunto. Não queremos ser reconhecidos apenas como um bom destino de férias, mas também, cada vez mais, como um país onde existem boas oportunidades de investimento, bons profissionais, bons investigadores e empresas sólidas e modernas", considera a eurodeputada Maria da Graça Carvalho.

A antiga ministra da Ciência, que assistiu à cerimónia de abertura presidida pelo primeiro-ministro, António Costa, e pelo chanceler Scholz, acrescenta que "a título pessoal, sendo eu relatora pela comissão IMCO da Estratégia Industrial Europeia e tendo sido relatora da nova geração de parcerias com a indústria do programa-quadro Horizonte Europa, esta também foi uma boa oportunidade de contactar diretamente com as empresas e conhecer melhor as suas expectativas".

Em Hannover, no espaço expositivo criado para ajudar ao milagre económico alemão ("nascemos em 1947, como uma empresa a pensar em empresas", explica Mike Bär, diretor de projetos), companhias portuguesas como a Simoldes ou a Incompol exibem os seus produtos, muitas vezes componentes de produtos de marca alemã, como chassis da Mercedes ou suspensões da Porsche. Ricardo Pereira, diretor de operações da Incompol, e Nuno Duarte, diretor comercial, confirmam que esta relação com as gigantes alemãs é vital para a empresa de Porto Alto. Mesmo com a guerra a afetar a Europa, o otimismo prevalece e esperam que "a presença em Hannover traga novos contratos".

Uma das estrelas da Feira de Hannover foi o hidrogénio, imaginado como a energia do futuro. E desde a canadiana Next Hidrogen até à alemã NEA Green, não faltavam propostas. Mais convencionais, as caixas de armazenamento de alta temperatura da alemã Kraft Block (que recorre ao calor em excesso emitido, por exemplo, por uma fábrica de cerâmica e o usa para aquecer uma piscina graças a uma espécie de bateria gigante) mostram haver consciência de que são necessárias várias alternativas a longo prazo ao gás.

A necessidade de revolucionar as fontes de energia já existia antes dos acontecimentos na Ucrânia, mas acentuou-se nestes meses, garante Maximilian Friedrich, consultor da Federação Alemã da Energia Renovável. "A Alemanha tem o programa mais ambicioso do mundo em relação às energias renováveis. E há um grande consenso político. Só a AfD está fora. Para eles é hocus pocus", afirma Friedrich, sublinhando a atitude cética da extrema-direita.

Na Alemanha, até politicamente a guerra na Ucrânia tem gerado situações complicadas, como, por exemplo, a pouca vontade de o presidente Volodymyr Zelensky em receber em Kiev o homólogo alemão, Frank-Walter Steinmeier, acusando o social-democrata de, quando era ministro dos Negócios Estrangeiros num dos governos de Merkel, ter sido complacente com a Rússia. A antiga chanceler tem sido criticada por ter sempre tentado ter boa relação com Vladimir Putin, com a própria Merkel a ter vindo explicar que nunca teve ilusões com o presidente russo, mas que era preciso "encontrar um modus vivendi onde não se estivesse em guerra e se tentasse coexistir apesar das diferenças". Outro antigo chanceler, o social-democrata Gerhard Schröder, acabou mesmo por ver a opinião pública virar-se contra ele por resistir a criticar Putin (com quem assinou contrato para o Nord Stream 2) e manter cargos em empresas russas.

Mas o verdadeiro embate para o país virá de um eventual prolongamento da guerra e da lógica das sanções. Neste momento já está na fase 2 de emergência energética, sendo que a fase 3 afetará a indústria, pois as prioridades serão aquecimento das casas e dos hospitais. Um cenário de pesadelo para a economia alemã, mas não só, como nota Maria da Graça Carvalho: "Na Alemanha, o gás natural representa cerca de 27% de todo o consumo de energia. E a maior parte da utilização tem como finalidade o aquecimento e atividade da indústria. A utilização do gás na produção de eletricidade surge apenas em terceiro lugar. Existe, como é sabido, uma forte dependência das importações da Rússia. Com as sanções em vigor, e outras que venham a ser adotadas, os desafios para a economia alemã são enormes. De acordo com os últimos dados, em meados do mês as reservas do país estavam apenas a 55% da capacidade. A meta é que cheguem aos 90% em novembro. Isto podem parecer preocupações distantes a países como Portugal, que não dependem da Rússia e até estão com bons níveis de reservas. Mas a Alemanha é o motor da economia europeia. Se a indústria alemã sofrer, todos sofreremos."

Em Berlim, há um novo museu, o Futurium. Como explica o diretor, Stefan Brandt, a ideia não é fazer previsões, mas sim debater como as nossas decisões hoje podem influenciar o amanhã. Esta guerra no Leste da Europa certamente determinará parte do futuro alemão e europeu. Só não sabemos como...

 

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