Press É urgente construir uma UE da saúde

News | 04-04-2022 in Expresso

A maior dificuldade de se ser portador de uma doença rara está na diminuta atenção, científica e política, dada à resolução das dificuldades que estes doentes enfrentam. Porém, sublinha Paulo Gonçalves, todas juntas estas patologias afetam aproximadamente 600 mil pessoas em Portugal e 300 milhões em todo o mundo. “O que tem acontecido é que, por serem raras, estas doenças têm ficado para o fim”, diz o presidente da RD-Portugal, a união nacional das associações de doentes nesta área. Além das vítimas diretas das cerca de sete mil maleitas que são conhecidas, o responsável alerta que não é possível esquecer os efeitos colaterais — os familiares. Mas, afinal, quão tortuoso é o caminho percorrido por quem é, estatisticamente, uma raridade?

A primeira pedra está no diagnóstico. “Tem de deixar de acontecer a espera média de seis, sete anos para o diagnóstico, que, por vezes, chega a demorar 20 ou 30 anos”, afirma Luís Brito Avô, responsável pelo Núcleo de Estudos para as Doenças Raras (NEDR). Embora estes casos sejam comuns, em grande medida pela dificuldade de identificar a origem dos sintomas e pela falta de conhecimento, esta não foi a experiência de Ricardo Pereira. Os médicos descobriram que sofria de um tipo de imunodeficiência primária quando tinha dois anos. “É um defeito genético, já nasci com o problema”, relata. Como outros que padecem da mesma mutação do cromossoma X — na sua maioria do sexo masculino —, o sistema imunitário de Ricardo não produz imunoglobulinas. Estes anticorpos são essenciais para defender o corpo contra infeções, vírus e bactérias, que, se não forem controladas, podem pôr em risco a vida dos doentes.

Apesar de nestes casos os primeiros sinais surgirem durante os primeiros meses ou anos de vida, por vezes o diagnóstico pode tardar. “Pode surgir, por exemplo, uma infeção pulmonar tratada com antibiótico e a situação melhora, mas daí a uns meses surge nova infeção e continua a medicar-se. Vai-se mascarando”, detalha Ricardo Pereira. Aos 34 anos, o também presidente da Associação Portuguesa de Doentes com Imunodeficiências Primárias, papel que assume em regime de voluntariado, precisa de uma transfusão de imunoglobulinas todos os meses para manter a qualidade de vida. “É uma reposição de anticorpos que o meu organismo não é capaz de produzir”, acrescenta.

As imunoglobulinas, que mantêm controladas as diferentes doenças causadas por imunodeficiência, têm origem no plasma recolhido das dádivas de sangue. Ainda que Portugal seja um país em que existe forte adesão da população às dádivas, a pandemia provocou um abrandamento que chegou a ameaçar a disponibilidade de medicação. “Alguns hospitais tiveram de suspender os tratamentos. Neste momento, estamos com um problema de limitação grave em Santa Maria, onde trabalho”, confirma a especialista Susana Lopes da Silva e membro do Grupo Português de Imunodeficiências Primárias (GPIP), que diz que “é fácil pormos as culpas na pandemia”, mas que esta já é uma situação antiga que se agravou nos últimos dois anos. “Acontece que o plasma que damos, na maioria, não tem sido aproveitado. Tem sido descartado”, critica. A falta de capacidade para o fracionamento do plasma, de que resulta o aproveitamento das imunoglobulinas para a produção do medicamento final, é uma das razões apontadas. Susana Lopes da Silva defende, por isso, que seja encontrado um modelo que evite este desperdício para que Portugal consiga garantir o acesso a esta terapêutica a um custo menor para o Estado. A atribuição de uma recompensa a quem doa pode ser um dos caminhos.

COOPERAÇÃO EUROPEIA É ESSENCIAL
“A ideia de uma União Europeia da saúde vem sendo discutida há muito tempo”, partilha Maria da Graça Carvalho. Para a eurodeputada, a pandemia tornou clara “a necessidade de se ir mais longe” nesta matéria, ainda que tenham sido feitas conquistas ao nível dos cuidados médicos transfronteiriços e da investigação científica. Aliás, no campo da inovação, programas como o Horizonte Europa, com uma dotação acima dos €95 mil milhões, serão fundamentais para acelerar e apoiar, entre outros, a descoberta de medicamentos para muitas das doenças raras. O mesmo acontece com o Plano Europeu de Combate ao Cancro, com €4 mil milhões, outra das áreas clínicas em que a raridade dos casos tem vindo a aumentar. “Um cancro do pulmão é muito frequente, mas se o decompusermos nos seus subtipos acabamos por ter subgrupos muito pequenos que correspondem a 1% do total ou menos”, afirma Rui Henrique. O presidente do IPO do Porto acredita que o programa europeu, que dará corpo ao documento nacional, “é absolutamente fundamental” para orientar as estratégias a adotar. Quer nos cancros raros quer nas consequências da pandemia que importa agora minimizar.

Entre elas, os atrasos nos diagnósticos oncológicos que terão impacto negativo no estágio em que a doença é descoberta e, consequentemente, na sobrecarga do SNS. As prioridades da estratégia nacional devem incluir o reforço da cooperação entre centros de referência portugueses e europeus, mas também o empoderamento dos doentes, que devem ser envolvidos “na definição das políticas”. Igualmente prioritário deve ser o acesso, à mesma velocidade, às melhores e mais recentes terapêuticas em todo o território comunitário. “Nunca seremos verdadeiramente europeus se a Europa não for uma casa comum onde poderemos ter acesso àquilo que qualquer europeu tem”, remata Rui Henrique.

Doenças raras: as prioridades do presente e do futuro

ACELERAR DESCOBERTA DA DOENÇA
Diagnóstico Recomendação dos especialistas passa por garantir a determinação da patologia rara no prazo máximo de um ano após a manifestação dos sintomas. Expansão dos centros de referência nacionais deve continuar, com mais recursos humanos e financeiros.

MAIS MEDICAMENTOS ÓRFÃOS
Investigação Canalizar esforços da ciência para o desenvolvimento de terapêuticas para 95% das doenças raras ainda sem resposta medicamentosa. Aumento dos ensaios clínicos é crucial.

PARTILHAR INFORMAÇÃO
Dados Criação do Registo Nacional das Doenças Raras deve ser uma prioridade, bem como a partilha de dados em saúde no espaço europeu.

DO PAPEL À REALIDADE
Apoios Garantir que as ajudas sociais previstas na legislação para portadores de doenças raras e suas famílias são efetivamente aplicadas na prática. Fiscalização é fundamental, defendem associações de doentes.

Textos originalmente publicados no Expresso de 1 de abril de 2022

 

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