Press Quando as ajudas estatais ameaçam o Mercado Comum

Opinion Articles | 03-11-2022 in Dinheiro Vivo

O novo pacote alemão de ajuda às empresas e aos consumidores afetados pela crise dos preços da energia, orçado em 200 mil milhões de euros, é um verdadeiro teste à resiliência do Mercado Comum Europeu. Antecipam-se tempos difíceis para a vice-presidente da Comissão Europeia, Margrethe Vestager, responsável pelo pelouro da Concorrência, a quem caberá decidir se este novo envelope de ajuda estatal, que se segue a vários outros que a Alemanha aprovou e tem vindo a executar desde o início da pandemia de covid-19, cumpre ou não as regras do jogo europeias.

Por um lado, será sempre extremamente delicado para a Comissão Europeia exercer o seu poder de bloqueio das decisões de um Estado-membro sobre a ajuda à sua economia. Sobretudo se essa ajuda for considerada proporcional e justificada. Não é por acaso que não o tem feito desde o início da pandemia. E não é por acaso que os tribunais europeus também não se têm pronunciado desfavoravelmente em relação aos pacotes de medidas nacionais que passaram pelo crivo da Comissão.

Tratando-se da Alemanha, principal motor da economia europeia, mais complexa se torna uma eventual decisão desfavorável, porque as consequências negativas para este país são geralmente repercutidas, com maior ou menor intensidade, no conjunto dos 27.

Além de que o facto de a Alemanha ter mais recursos financeiros, ou maior facilidade de acesso aos mesmos, dificilmente poderá ser invocado como argumento para a impedir de os utilizar como bem entender, dentro dos limites previstos na lei.

 Mas parece igualmente evidente que algum tipo de supervisão deste plano terá de ser levada a cabo, como terá de ser em relação a medidas de semelhante proporção adotadas por outros países, pelo simples facto de a sua dimensão ser de tal forma grande que é quase impossível que não venha a criar iniquidades. Desde logo no tratamento dado às empresas alemãs por comparação com as suas concorrentes europeias.
 
A dimensão da economia alemã não chega para justificar os valores em cima da mesa. Basta lembrar que, no seu mais recente pacote de medidas para fazer face à crise dos preços da energia, a Comissão Europeia propôs um valor máximo inferior a 40 mil milhões de euros, do orçamento comunitário, para apoiar pessoas e empresas no conjunto dos 27. Ou seja: exatamente com os mesmos objetivos, a Alemanha está a propor-se atribuir internamente cinco vezes mais do que a União fará a todos os Estados membros.
 

O Mercado Comum, cuja fundação fará 30 anos em janeiro de 2023, e que se tem constituído como um dos pilares fundamentais do projeto europeu, não se resume à livre circulação de bens, serviços, pessoas e capital. Pretende também, e sobretudo desde que o Euro consolidou a união monetária, em 1999, constituir um espaço regido por regras conjuntas, para benefício de todos os países da União e para a progressiva convergência entre estes. E este espaço tem de ser pautado por algum equilíbrio, sob pena de os seus objetivos ficarem comprometidos.

Os riscos de fragmentação existem, sobretudo em tempos de crise. Basta recordarmos os primeiros tempos da pandemia de covid-19, nos quais o primeiro impulso de alguns Estados-membros foi começarem a tentar resolver individualmente os seus problemas, tanto na resposta no plano da saúde como nas ajudas económicas, sem se preocuparem muito com eventuais efeitos colaterais dessas medidas para terceiros.

Não podemos aceitar que as crises acentuem as assimetrias existentes na União Europeia. Caso contrário, estaremos a compactuar com uma lógica de "salve-se quem puder". A este pacote de ajuda estatal alemão, seguir-se-ão outros igualmente ambiciosos, nos países com os meios financeiros para os adotarem, enquanto aos outros estados-membros restará apenas tentar mitigar danos.

Vestager sabe-o perfeitamente, e não acredito que esteja tranquila em relação a este assunto. De resto, deixou entender isso mesmo numa recente audição na Comissão da Indústria, Investigação e Energia, no Parlamento Europeu, na qual também tive a oportunidade de a questionar a este respeito.

A questão é o que poderá fazer a vice-presidente que seja suficientemente eficaz para dissuadir efeitos cascata nas medidas de auxílio à economia sem hostilizar abertamente a Alemanha ou outros países que sigam os seus passos. A meu ver, a única certeza é que esta terá de ser uma solução negociada - e nunca um confronto aberto -, com ambas as partes a fazerem algumas cedências. De resto, é provável que a Alemanha já contasse com isso quando apresentou as suas medidas.

 
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